Às vezes, boas intenções não são o suficiente. Elas são importantes para encaminhar as ações para o lugar certo, mas nunca serão capazes de substituí-las. Isso porque uma fraca execução pode deturpar a mensagem ou até mesmo ter o efeito contrário do desejado. E esse é o problema no cerne de Calico.

Desenvolvido pelo duo Peachy Keen Games e publicado pela Whitethorn Games em 15 de dezembro desse ano para PC, Switch e Xbox, Calico é um simulador de comunidade focado em animais de estimação — principalmente gatos, mas também cães, pássaros, ursos, cervos, coelhos, pandas-vermelhos, porcos, raposas, guaxinins, cavalos, furões e capivaras. Apesar de ser anunciado como um jogo que prioriza a administração de uma cafeteria que havia sido abandonada, essa parte do gameplay é bastante discreta e aparece poucas vezes na história. O enredo é uma aventura por uma ilha em formato de estrela, sendo a única missão principal o desbloqueio das regiões localizadas em suas cinco pontas, mas também disponibilizando missões secundárias para melhorar a relação com cada um dos habitantes da ilha.

Explorando a ilha, é possível encontrar diferentes regiões.

O jogo começa com uma tela de customização surpreendentemente variada, que permite criar um personagem de quase qualquer tipo e de quaisquer cores. Esse aspecto prevê a parte mais bem-sucedida do jogo: quase tudo — roupas, móveis, animais, até mesmo a hora do dia — é customizável, e as possibilidades dessa customização são praticamente infinitas. Nesse sentido, Calico é um verdadeiro sandbox. A quantidade de espécies diferentes de animais também surpreende; até mesmo em cada uma das categorias há diversidade. Por exemplo, um “pássaro” pode ser um pombo ou um corvo; um “urso” pode ser um urso-cinzento ou um urso-polar, e por aí vai. Mas é uma pena que as qualidades acabem por aí.

Eu não queria ter que ser negativo com esse jogo, já que ele te dá apenas positividade, mas é impossível. O que me dá esperanças em Calico é que nada está fundamentalmente errado, sendo os maiores problemas derivados de falta de tempo de desenvolvimento, o que pode ser consertado futuramente em pacotes de atualização. Só que o jogo foi lançado no estado em que está atualmente, e é meu trabalho analisá-lo dessa forma. E, nessa forma, é difícil recomendá-lo.

A variedade de animais é grande.

Os gráficos têm o potencial para serem fofos e divertidos, o que é visível pela arte 2D que o jogo utiliza em sua promoção, mas na prática são bastante básicos, seja na iluminação, modelos e texturas. Eles parecem ter saído de jogos dos anos 2000, e poderiam certamente ser aperfeiçoados com “mais tempo no forno.” Essa percepção também se reflete na interface, constantemente presente e desnecessariamente apresentando os comandos de uma forma bruta e que destoam do tom fofo do jogo. Ela atrapalha mais do que ajuda. A formação do terreno também é primitiva, com inclinações extremamente íngremes e bordas grosseiramente artificiais que favorecem cenas bizarras, parecidas com aqueles memes dos cavalos escalando montanhas de Skyrim. Outra coisa que me incomodou desde o primeiro momento foi o fato das flores nunca estarem no chão, e sim flutuando alguns centímetros acima dele.

As animações são rudimentares em quase todos os casos. Um exemplo que me chamou a atenção foram as animações para se sentar ou se deitar e sair dessas posições — ou melhor, as não-animações. A personagem só desliza de uma forma esquisitíssima da posição sentada/deitada para a posição em pé, sem qualquer suavidade ou sequer tentativa de realismo. O manuseio dos animais é estrambólico, em especial com animais grandes, já que são transformados em ragdolls e parecem estar mortos, quebrando completamente a atmosfera do jogo. Uma vez, um gato preto flutuante ficou preso seguindo a minha personagem por toda a ilha até que eu fechasse o jogo, resultado de um motor físico repleto de bugs. Aliás, bugs e glitches são uma constante em Calico. Atravessar objetos que deveriam ser sólidos é a regra, e não a exceção. Patas, cabeças e rabos de animais atravessam paredes a todo o tempo. É comum ver personagens caminhando sem qualquer tipo de animação.

Uhh… Senhor gato? Está tudo bem?

Quanto à narrativa, ela é bastante simples. Os personagens não passam muito de meros estereótipos, sem qualquer nuance. Também é aparente que todos foram escritos pela mesma pessoa, já que se comportam e falam da mesma forma excessivamente fofa e melosa. As missões por eles fornecidas carecem de profundidade, sendo a maior parte delas limitadas a “vá ao lugar X e fale com a pessoa Y,” com apenas duas variantes: encontrar um animal específico ou preparar certa receita. No início, eu pensava que as escolhas de diálogo interferiam no seguimento da história e na relação com os habitantes da ilha mas, depois que notei que muitas escolhas são duplicadas com o intuito de inflar artificialmente a aparência de liberdade nas interações, percebi que todas as opções recebem a mesma resposta e não interferem em nada.

Os efeitos sonoros são, como o resto do jogo, rudimentares, e as músicas se repetem infinitamente, me forçando a tirar os fones de ouvido de tempo em tempo. Algumas faixas são cantadas, e nessas consegui imergir no mundo de Calico. Parece que, ali, os desenvolvedores foram capazes que capturar a essência fofa e divertida que o jogo tentou passar e falhou em tantos outros aspectos.

Os diálogos variam entre repetitivos e inúteis.

Toda a ideia de Calico me fez querer aproveitá-lo: animais de estimação, café, customização extensiva, um elenco diverso… Mas a cada novo glitch, a cada oportunidade perdida, a cada música irritante, eu ia perdendo mais a esperança e percebendo o que minha avó já me dizia desde pequeno: de boas intenções, o inferno está cheio.

Essa análise parece ter sido extremamente negativa, e ela provavelmente foi. Isso porque é difícil encontrar algum aspecto em específico que seja mais bem-feito do que mal-feito. Individualizando cada ponto, Calico parece um jogo terrível. Mas, de alguma forma, eu me diverti jogando. Eu quis ir até o fim e, depois de lá chegar, o completista dentro de mim me fez realizar as missões de cada um dos personagens e explorar todo o mundo para encontrar cada espécie de animal. Por isso, acabo por me ver obrigado a indicá-lo para pessoas que se sintam especialmente atraídas pelos temas do jogo e que não se importem com as falhas técnicas que, apesar de constantes, não impedem efetivamente o gameplay.


Conclusão

Gatos, café e fofura: o que poderia dar errado? Aparentemente, muita coisa. Calico é a prova suprema de que uma boa intenção não cria automaticamente um bom produto, tendo seu curto período de desenvolvimento resultado em um jogo que parece cru em todas as suas facetas.

(cópia para análise gentilmente cedida pela Whitethorn Games)